top of page
#7 Há males que vêm para bem. “Guerra de Santos” de Giovanni Verga (parte 2)
Transcrição

INTRODUÇÃO - 00:00 a 01:09

Olá minha querida e meu querido! Bem-vindo ao Literatura Viral, podcast em que eu discuto Literatura e Epidemias. Meu nome é Áureo e eu sou doutorando em estudos literários. No episódio anterior você me ouviu discutir a primeira parte de um conto de Giovanni Verga, um grande autor da Literatura italiana. O conto se chama "A Guerra de Santos" e faz parte de um grupo de episódios em que eu vou discutir os "aspectos positivos", digamos assim, entre aspas claramente, das epidemias. Ou melhor, de como as epidemias podem aparecer em Literatura de maneira positiva e podem motivar ações que muitas vezes são curiosas e interessantes. Às vezes um pouco ridículas, mas quase sempre muito engraçadas. Nós ainda vamos falar muito desses aspectos cômicos da representação das epidemias na Literatura, mas por hoje nós continuamos com a segunda parte de "A Guerra de Santos". E fiquem tranquilos senhoras e senhores, que hoje eu juro que não vou passar de meia hora.

 

ANÁLISE DO CONTO GUERRA DE SANTOS - 01:10 a 10:17

E hoje continuamos com a análise do conto "Guerra de Santos". Nós vimos até agora com a procissão de São Roque que desembestou em uma pancadaria generalizada. De um lado nós temos o compadre Nino, que é devoto de São Roque, e do outro, compadre Turi e a sua irmã Sarita, que é noiva de Nino. Até agora nós também vimos como o texto começa no meio da ação, usando uma estratégia que é próxima a dos textos anteriores, mas que ele cria várias nuances cômicas, enquanto que os outros textos buscavam sentimentos de repulsão ou de medo. Eu também falei bastante sobre como o texto é muito ágil e nós vamos ver hoje mais exemplos disso. Uma tendência que eu estou chamando de quase cinematográfica do Verga a sobrepor imagens, ligeiramente separadas cronologicamente, de modo que o texto ganhe uma velocidade muito grande.

E agora sim podemos retomar nosso conto. A gente vê pela primeira vez o compadre Nino se expressar berrando: "Diacho de Santo, berrava compadre Nino, todo surrado e dolorido. "Quero só ver quem ainda tem coragem de gritar viva São Pascoal!". A declaração dele é muito engraçada, de novo "Diacho de Santo", diacho faz a gente pensar em diabo. Então a tradução aqui foi excepcional, porque o original é: "Santo Diavolone" Então é: "Santo Diabão" seria essa a expressão em italiano. "Diacho de Santo" é realmente uma tradução excepcional, nesse contexto. Berrava compadre Nino e veja ele está todo surrado e dolorido, mas o discurso dele é um discurso de valentão. "Quero só ver quem tem ainda coragem de gritar viva São Pascoal". Então quando você escuta o que ele tem a dizer, você imagina que ele desceu a porrada em todo mundo, mas na verdade ele está surrado e dolorido. Então na verdade ele apanhou. (Risos) E de repente o Turi, que é amigo dele, né? O irmão da prometida esposa, responde a frase, a convocação do compadre Nino dizendo: "Eu, respondeu enfurecido Turi, viva São Pascoal, até a morte!". Como eles começam a brigar, a irmã do Compadre Turi, a Sarida, pula no meio da briga pra tentar separar o noivo e o irmão. Diz a tradução: "Até aquele instante haviam passeado em santa paz". Esse "santa" claramente é irônico, porque ela poderia ter dito: "Até aquele instante haviam passeado em paz".

Mas a tradutora, nesse caso, inseriu o "santa" para enriquecer o texto. Isso não está no original e essa inserção foi uma escolha muito sagaz, na minha opinião. Porque ela enriquece o texto para poder contrabalançar outras perdas.

Um pouquinho foi perdido na tradução do: "Deus nos acuda!" e aqui um pouquinho foi ganho. Então, no fim das contas, uma coisa equivale a outra. Então a Sarida está tentando separar a briga, mas aí o Compadre Nino grita, na tradução: "Viva o Santo de Araque!". E aí foi demais, até a Sarida saiu do controle e, enfurecida, gritava: "Viva São Pascoal!" Chegando quase a trocar tapas com o noivo, como se já fossem marido e mulher. (Risos) Então a própria referência aqui, de como se já fossem marido e mulher, é excepcional. Porque também é profundamente irônica. Como se o objetivo do casamento fosse sair no tapa. Aqui tem mais um comentário que eu preciso fazer, porque o original nesse momento acaba sendo um pouco mais rico. Porque o grito do Nino é: "Viva i miei stivali! Viva San Stivale!" Stivale é uma bota.

Então: "Viva as minhas botas, viva o Santo Bota!". Existe uma pequena brincadeira de linguagem aí, porque São Pascoal em italiano é San Pasquale e Stivale rima com Pasquale. Então, ele está ridicularizando o nome do Santo e dizendo: "Viva o Santo Bota!", mas rimando. San Pasquale, San Stivale seria. É difícil traduzir porque Pascoal é complicado arranjar rima. Palavras que rimam com Pascoal, em português, tendem a ser adjetivos; boçal, estatal, funcional e etc. É mais complicado arranjar

substantivos; sal, "viva o meu sal, viva o Santo Sal". Faz a rima com São Pascoal,

mas não dá a mesma ideia, né? Fica até um pouco difícil de entender a piada. Especialmente porque a piada faz sentido com a resposta do Turi, que é: " Tè, per San Rocco, tu dei stivali!". Que é: "Então toma a minha bota e dá um chute no Nino." Então existe (risos) uma réplica à piada, que é baseada numa rima. - Ah tu quer bota? Então

toma aqui a minha bota e toma um chute. - Se a gente traduzisse isso como "sal" dificilmente entenderia, a gente teria que mudar a história só se ele jogasse uma punhalada de sal. A não ser que a gente transformar-se a bota em punhal. Viva Santo Punhal e ele

tomou uma apunhalada. Só que a gente já está alterando a história né? Mas tudo bem! Vamos deixar nossos amigos aí desdentados e de olho roxo e continuamos com o texto. "Nessas ocasiões os pais brigam com os filhos, as mulheres separam-se dos maridos, se por má sorte uma do bairro de São Pascoal casou-se com a de São Roque.". De repente a confusão já acabou e a gente já encontra a Sarida no momento posterior dizendo: "Não quero mais nem ouvir falar daquele sujeito." Parágrafo seguinte: "Por mim a Sarida pode mofar."

E esse é o compadre Nino falando. Então a gente vê que, praticamente, cada parágrafo, cada frase dá um salto para o futuro e que a gente tem essas pequenas cenas, como se a gente

tivesse assistindo um pequeno vídeo no Youtube de time-lapse photography. Em que a gente talvez em 30 segundos, vê um prédio sendo construído ao longo de dois anos. Aí você coloca todas as fases juntas e vê, sei lá, a barba de alguém crescendo. Basicamente é uma técnica parecida que o Verga está empregando aqui. E a história continua... eu não vou entrar em maiores detalhes porque a descoberta desses fatores surpreendentes é um dos direitos do leitor. Muito do prazer da leitura vem daí. Só há alguns outros fatores que eu gostaria de apontar. Os devotos de São Pascoal (Risos) subornam o bispo para que ele dê o

direito aos padres do bairro de São Pascoal de usar uma túnica especial,

que se chama Murça. É uma pequena capa que cobre os ombros e que algumas ordens religiosas usam e que é considerada de prestígio. Então agora que os devotos de São Pascoal tem o direito de usar a Murça, isso é motivo para aquecer ainda mais a disputa. Aí o texto entra nessa diatribe. É uma palavra bonita para dizer polêmica. Porquê?

Os devotos de São Roque, cito: "Cujo os padres estavam sem murça, tinham ido até Roma fazer o diabo aos pés do Santo Padre. Com documentos a mão, papel timbrado e tudo mais, em vão.". Então eles tentaram alterar isso fazendo o diabo junto com o Papa, em Roma. Então claramente a expressão aqui é muito irônica.

A história vai continuar o Prefeito, o Juiz, vão se reunir. Vão tentar resolver a situação, mas na verdade na reunião, na prefeitura, os políticos também acabam brigando (Risos). Então só piora e piora mais ainda. Em um certo momento a gente tem um único padre que está confessando todas as mulheres do povoado. E mais para frente a gente vai ter uma outra cena, que eu acho de grande qualidade, em que a Sarida está se confessando com o padre e diz que, cito: "Todo domingo cometo pecados na igreja por causa de Compadre Nino.". E o padre pergunta para ela porquê e ela diz que: "Nino coloca-se perto do altar-mor olhando para mim e rindo com seus amigos durante todo o tempo da missa.". Próxima frase: "E o Reverendo procurou abrandar o coração do Compadre Nino.". Próxima frase: "Mas se é ela que me vira as costas quando me vê, como se eu fosse um excomungado, respondeu o camponês.". - E eu só tenho que dizer uma coisa aqui, excomungado é uma das gírias mais usadas aqui em Floripa tá? "Ê, tá tudo na rua esses excomungado aí ó!". No tempo de Corona, ao invés de ficar quarentena em casa, tá tudo na rua, excomungado. - Mas, voltando ao assunto essa é exatamente a técnica de progressão de corte de que eu tava falando. A gente tem uma fala da Sarida, uma fala do Reverendo já falando com o Nino e o Nino se defendendo. Percebam que o texto é muito sucinto, narrador em momento nenhum disse pra gente: "Então o Padre foi falar com o Nino, ele disse que blá blá blá." O texto dá tudo isso de barato, tu tem que estar atento e ele conta com a tua atenção aqui. Esse é o tipo de texto que se alguém vier te perguntar se tu quer uma xícara de café e tu vacilar, já perdeu o bonde, já perdeu. Porque basta uma frase mal entendida aqui e um personagem pode nascer ou morrer e tu não vai nem ficar sabendo, de tão ágil que é a escritura do Verga nos contos.

DUAS CATÁSTROFES: SECAS E EPIDEMIA DE CÓLERA - 10:18 a 12:33

A história continua se desenrolando, até que acontecem duas coisas. Primeiro, não há chuvas e há uma seca. Os devotos de São Pascoal ganham direito de fazer diversas procissões pela cidade para atrair as chuvas. Mas isso não funciona. E todos eles, que são agricultores, dependem das chuvas para poder comer. Nesse contexto, vários dos devotos de São Roque também vão meio que escondidos nas procissões do São Pascoal. Porque né? Na dúvida, se o São Pascoal mandar chuva é bom para todo mundo. E o que é legal é que eles vão para lá, "flagelando-se como burros e com a coroa de espinhos na cabeça." Tudo para o bem da colheita.". Para mim o que interessa é esse "flagelando-se como burros", de novo, ele está sendo irônico, mas ele já dá um pré-anúncio da epidemia que está para entrar na história. Porque durante os tempos da Peste, no século 14, uma das coisas muito importantes que aconteceu, um dos fenômenos mais interessantes, é o fenômeno dos flageladores. Surgiram movimentos religiosos em que as pessoas se flagelavam para punir os próprios pecados. Porque a Peste era interpretada como uma punição de Deus pelos pecados da coletividade. Então essa procissão e essa referência ao "auto flagelar-se", mea culpa, mea culpa, já é um pequeno pré-anúncio para a epidemia que está prestes a acontecer. Esse é um dado. O outro dado importante é que por causa da seca, o compadre Nino tem que vender a sua mula. E a mula é o instrumento de trabalho do camponês nesse contexto. Então é uma coisa grave o que está acontecendo aqui.

Quando a Sarida fica sabendo da notícia, ela manda o irmão, o compadre Turi, com quem o compadre Nino saiu no tapa, levar um dinheiro lá para ele. Mas o Nino não aceita ajuda e responde dizendo: "Ainda restam-me os braços, graças a Deus. Grande santo aquele São Pascoal não é?". (Risos) De novo toda essa insistência nessas palavras de campo semântico religioso. E ele é que ironiza o São Pascoal, de quem o a ex-noiva e o irmão são devotos, porque ocorreram todas essas procissões do São Pascoal para atrair a chuva e não funcionou.

SÃO ROQUE, UM SANTO DA PESTE E A SCUOLA GRANDE DI SAN ROCCO - 12:34 a 15:44

Paralelamente a isso, enquanto a seca continua, chega uma epidemia de cólera. Começam os primeiros sinais de que o cólera está chegando nesta província. Aqui há um dado muito importante cultural que é San Rocco, São Roque, não é o santo do Iron Maiden, como eu falei antes, é o santo da Peste. Ele é um santo que surge em algum momento do século 13 ou do século 14. Algumas hagiografias que dizem que ele nasceu em 1295, daí nesse caso ele já estaria vivo durante o primeiro surto de Peste da Idade Média, em 1348. Mas há várias outras hagiografias que colocam a data de nascimento dele em 1350, ou seja, imediatamente após a Peste. O caso é que existe uma pequena variação, em alguns casos ele viveu até 1320, em alguns casos ele viveu até 1376/1379, que é cronologia mais aceita.

Em vida São Roque teria não só sofrido de Peste e sobrevivido, - a gente tem que lembrar que a taxa de letalidade da Peste Negra é de oitenta por cento. Então uma pessoa a cada cinco sobrevivia – então São Roque teria sobrevivido e, por isso, ele seria imune e passou a dedicar a vida, embora aristocrata e rico, a cuidar dos convalescentes. Por isso ele operou vários milagres e etc. E aí teria virado Santo já no início do século 15, o início de 1400. Ele morre na Itália, ele é um santo de Montpellier, que é uma cidade próxima a Marseille. A gente falou de Marseille no episódio em que eu discuti o texto de Maupassant. Marseille que é a cidade da Peste quase que por antonomásia. Mas o São Roque morre na Itália, em Voghera, que é uma cidade próxima a Pavia e Milão. Mas os restos mortais dele são comprados por Veneza, no início de século 15, 1400 e pouquinho e são levados para Veneza, onde são colocados dentro da Chiesa de San Rocco - Igreja de São Roque. Uma igreja que é construída especificamente para ele, que conta com afrescos do Tintoretto e etc. A coisa curiosa é que na frente da igreja existe a Scuola Grande di San Rocco, que é uma confraternidade laica em que membros abastados, quase sempre da sociedade veneziana, se reuniam. Embora laica, ela tem uma forte marca religiosa.

Todo o fausto, que a gente encontrou na procissão no início do conto, se encontra nessa instituição. Ela é um museu hoje, é possível visitar e ela conta com diversas pinturas muito relevantes para a história das artes plásticas. Têm quadros do Ticiano lá dentro, e do Tintoretto. Mais de uma dezena de quadros gigantescos do Tintoretto. Também na Igreja de São Roque, essa que é na frente, há vários outros quadros do Tintoretto, representando cenas da vida de São Roque. Esses são dois dos grandes pintores da scuola veneziana, escola veneziana de pintura, que vai ter toda uma relevância para a história do Renascimento, que vai ser uma das influências do Michelangelo, antes de ele pintar a Sistina e etc. - Agora se prepare para não ter um ataque do coração na entrada, porque 18 euros – 100 reais para ver um museu não tá fácil, né meu amigo?

EPIDEMIA DE CÓLERA EM "GUERRA DE SANTOS" - 15:45 a 19:51

Voltamos ao conto. Começa a epidemia de cólera, assim como São Pascoal deveria ter trazido as chuvas e não foi capaz de fazer isso, São Roque deveria proteger da Peste né? E chega essa nova epidemia que é vista e entendida como a Peste (a cólera).

 Mas São Roque também não consegue evitar essa epidemia. Então a mesma coisa que aconteceu antes, agora se repete. E aí tem dois elementos tão interessantes no texto. O primeiro é a forma como é descrita o início da epidemia, cito um trecho: "Mas pouco depois os doentes começaram a aparecer cada vez mais, como gotas enormes que anunciam a tempestade."  Então vejam que o São Pascoal foi incapaz de atrair as chuvas e daí como é que a epidemia chega? Como grandes gotas que anunciam a tempestade. Ao colocar essa descrição dentro desse campo semântico de água de chuva, o texto está

estabelecendo uma pequena brincadeira linguística. Uma outra coisa muito divertida é que uma devota de São Roque teria tido uma visão em que ela, supostamente, viu o Santo dizer pra ela:

"Não temam pela cólera, eu cuido disso. Não sou como aquele inútil de São Pascoal." (Risos) Então a rivalidade também existe lá no céu, não é só na terra não, segundo a visão dessa devota. O que que acontece? Turi e Sarida ficam ambos doentes de cólera. E a cólera é uma doença violentíssima e a taxa de letalidade dela é de cinquenta, sessenta por cento. Eu não vou poder entrar em maiores detalhes, mas eles ficam ambos prostrados, muito, muito doentes e nesse momento, o Nino, que tinha se recusado aceitar ajuda voluntariamente oferecida  pela Sarida e pelo Turi, que certamente não são ricos, são também campesinos, então a ajuda que eles estavam oferecendo, para eles também significava muita coisa. O Nino vai então até a casa da Sarida e do Turi, em que ele encontra os dois prostrados pela doença, para cuidar deles. E aqui mais uma vez a gente presencia a agilidade do texto, porque o Nino chega na casa deles, a descrição de qual é o estado físico deles, em que eles estão muito fracos, mal conseguem falar, é apresentado muito rapidamente. O Nino faz umas exclamações, falando de São Roque e de São Pascoal, e imediatamente o texto já pula pro futuro. "Porém, a Sarida ficou boa e enquanto permanecia na porta com a cabeça enrolada num pano preto, branca como cera, lhe dizia..." Então vejam, ela sobrevive, mas continua muito fraca. Ela disse para o Nino: "São Roque me alcançou o milagre e também você deve levar uma vela comigo no dia da sua festa." Ou seja, ela está se oferecendo para levar junto com Nino uma vela para o São Roque, para o Santo que não é o devoto dela. Ela está fazendo um gesto de acolhença, em resposta ao sacrifício do Nino em ter vindo cuidar dos dois. O Nino reconhece isso, tanto que o texto diz: "Nino, com o coração apertado, aprovava

balançando a cabeça." Então esse "com o coração apertado" significa que o Nino entende o gesto que ela está fazendo. Mas a gente pula de novo pro futuro. Próxima frase: "Mas ele também ficou doente, esteve a ponto de morrer. Sarida então arranhava o rosto e dizia que queria morrer com ele, e que cortaria os cabelos para pô-los no caixão, pois não mostraria mais a ninguém o seu rosto enquanto vivesse.". (Risos)

Então até ontem tava se matando, que nem cachorro e gato. Mas agora a situação é essa. Então, de novo, é muito divertido essas sobreposições temporais, elas conseguem um efeito muito bacana. Em seguida, a gente vê o irmão e o agora novamente noivo, que estão ambos convalescentes, e que ficam agora trocando cortesias. Então o Turi agora disse para o compadre Nino: "Grande milagre fez São Roque.". Então ele admite, o milagre foi ter salvo a irmã dele. "E ambos convalescentes enquanto se esquentavam no sol com as costas na parede, o rosto cumprido, atiravam na cara um ao outro São Roque e São Pascoal...". Mas esse "atiravam na cara" agora é positivo, porque eles ficam trocando elogios, rasgando seda, - como a gente diz.

FINAL FELIZ - 19:52 a 23:16

Na próxima frase, o problema já acabou, já não tem mais epidemia e está se falando em organizar uma festa para agradecer São Pascoal pelo milagre. E aí como falaram em São Pascoal, o Nino, dessa vez, já compra briga e já diz: "Agora a gente vai festejar até os mortos.". E a resposta que dão para ele é: "E você pensa que é por causa de São Roque que está vivo?". Então, novamente, já começa. Apenas eles se recuperaram da epidemia e eles já começam a, novamente, trocar farpas. O cont termina com uma frase da Sarida, que pula no meio da discussão e diz: "Basta, basta se não vai ser necessária outra epidemia para fazer as pazes.". Então aqui a gente vê uma das funções sociais importantíssimas dos tempos de epidemia. São momentos em que a coesão social, a cooperação, a compaixão, são particularmente importantes. E existe esse lado bom, porque a gente pode escolher ver as epidemias como oportunidades de crescimento, crescimento pessoal e crescimento coletivo. A tensão gerada pela chegada da epidemia, talvez por se tratar de um fenômeno natural em que não há agência humana, necessariamente, cria um cenário em que Sarida e Turi se mostram generosos. E Nino se mostra magnânimo, porque ele, efetivamente, vai arriscar a própria vida para cuidar dos doentes, que são duas das sete obras de misericórdia: dar de comer aos famintos e visitar os doentes. Então é muito interessante que quando eles têm a agência e o poder de decisão e está tudo na santa paz, há conflito. No entanto, a epidemia, a seca, cria uma situação tal, em que os personagens são obrigados a se redimir, são obrigados a rever a própria ação. E, esse contraste entre se comportar mal quando devia se comportar bem, e se comportar bem, quando poderia se comportar mal né, é justamente a brincadeira do texto. Uma brincadeira que também existe na linguagem, com todas essas dicotomias entre céu e inferno e que associada a essa velocidade muito grande, gera um efeito cômico. Realmente, o conto é muito divertido.

Então aqui é possível perceber uma coisa que nós vamos discutir repetidamente. Embora epidemias sejam eventos trágicos e que causam muita dor, na literatura elas não são sempre, necessariamente, representadas como lúgubres, como puramente lutuosas. Elas também são manipuladas e também podem ser usadas em Literatura para gerar efeitos cômicos. Porque o cenário de urgência criado pelas epidemias oferece para os personagens uma situação extraordinária, uma situação que é tangencial, que é fora da curva, e que, portanto, é um momento em que eles podem brilhar, momento em que eles podem demonstrar o seu melhor e o seu pior.

Portanto, se aqui, esse é um momento em que Nino, Turi e Serida podem se mostrar magnânimos, nós veremos depois que é muito mais comum, na verdade, que as narrativas abracem as epidemias como formas de demonstrar a decadência de um personagem, demonstrar uma espécie de degeneração moral. É assim, por exemplo, que a cólera aparece no "Morte em Veneza", do Thomas Mann ou no "Middlemarch", da George Eliot, mas nós vamos chegar lá.

 

PRÓXIMO EPISÓDIO: "ASSIM VIVEMOS AGORA" DE SUSAN SONTAG - 23:17 a 24:13

E no próximo episódio, nós vamos continuar explorando esse tema nessa mesma direção, então o lado positivo, se não positivo, talvez o menos trágico, digamos assim. Nós vamos analisar um texto de uma das intelectuais mais maravilhosas do século 20, Susan Sontag, que é uma ensaista de mão cheia e produziu ensaios não só sobre temas de cunho filosófico, mas também crítica literária e obras ficcionais. Nós vamos analisar um conto que foi produzido em 1986, durante uma outra crise, de uma outra epidemia, a crise da AIDS, e que se chama "The Way We Live Now", "O modo como vivemos agora" de Susan Sontag. Senhoras e senhores até a próxima.

 

bottom of page