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#5 Terror, zumbis e Scooby-Doo: "A Máscara da Morte Rubra" de Edgar Allan Poe
Transcrição

INTRODUÇÃO - de 00:00 até 02:15

Olá meu querido, minha querida, esse é o Literatura Viral. O Podcast em que eu discuto Literatura e Epidemias. Meu nome é Áureo Lustosa Guérios, eu sou doutorando em estudos literários.  Até o momento nós discutimos dois textos literários, em que aparecem duas doenças diferentes. O primeiro foi A Peste, do João do Rio, em que a epidemia discutida na verdade‚ é a varíola (risos). Vai entender né? O segundo foi O Medo, do Maupassant, em que o Cólera aparece como um personagem fantasmagórico. E hoje, nós continuaremos a nossa discussão sobre o medo, a literatura e as doenças contagiosas, usando um conto mais gótico, mais macabro mais dark: "The Masque of the Red Death", do Edgar Allan Poe, que depois de domesticado vira: "A Máscara da Morte Rubra". Sou só eu ou Morte Rubra parece nome de torcida organizada?
 
E aqui estamos no nosso quinto episódio, senhoras e senhores, depois de já ter discutido a Teoria Hipocrática, a Teoria dos Miasmas e a susceptibilidade à doença causada pelo medo. Todos esses temas pertencem a História da Medicina e a História da Cultura. E eles são complexos e profundos, eu só pude arranhar a superfície, tem muita coisa para ser dita ainda. Mas como esse é um Podcast de Literatura, eu tinha que começar a falar de literatura em algum momento. (Risos)

Então, no terceiro episódio, a gente discutiu A Peste, do João do Rio e depois, O Medo, de Maupassant. Eu vou continuar discutindo esse tema no episódio de hoje, porque o medo e o pânico são temas centrais agora durante a crise do Corona. E aí está uma das possibilidades em que a Literatura pode enriquecer a nossa visão. Talvez não exatamente ela ajude a gente a lidar com a situação, mas ela certamente enriquece a gente de perspectivas sobre como, em outros momentos, as pessoas lidaram com esse assunto, pelo menos no reino da ficção.

O ROMANCE GÓTICO, O HORROR - 02:16 a 05:43

E embora eu já tenha flertado com elementos de Literatura Horror ou Gótica, nos episódios anteriores, hoje sim, a gente vai tratar de um conto que, efetivamente, pertence a esse gênero. Eu vou partir do pressuposto de que um texto literário de horror ou de terror é uma forma de ficção que pode ser em prosa, pode ser pode ser em versos, pode ser uma peça de teatro. Cujo objetivo é criar receio no seu público, medo. É assustar mesmo. E às vezes também criar sentimentos de repulsão, de nojinho mesmo. Perceba que essa é uma definição que é extremamente ampla e algo problemática, porque ela se baseia no efeito causado sobre o leitor e, não necessariamente, nos elementos que a gente encontra dentro do texto.

Então, uma história de terror é uma história que tem fantasma? Às vezes sim, às vezes não. Eu posso causar medo com fantasmas ou sem fantasma. Com um Morto-Vivo, com um Zumbi. Não é a presença desses elementos, que muitas vezes são sobrenaturais, mas não necessariamente devem ser‚ que justifica que um texto pertença a Literatura do Horror.

Nos saudosos tempos do Playstation 1 (Risos), você jogava Resident Evil e pô, era assustador dar uns tiros nos zumbis. Agora quando você assiste "O Despertar dos Mortos", do Romero né? O "Dawn of the Dead" de 1978, um dos primeiros filmes de zumbi. Cara, não dá para levar aquele filme a sério. (Risos) Filme excelente e divertidíssimo, é um filme super engraçado.  O que demonstra para a gente que não é a presença do zumbi em si, que faz o gênero. Em uma certa medida "O Despertar dos Mortos", não obstante, seja filme super sangrento, splatter e etc, onde vários takes poderiam ser usados para fazer capa de cd de Heavy Metal né? (Risos)

É possível argumentar que o humor desse filme é mais próximo do humor de um filme do Charlie Chaplin, por exemplo, baseado em quedas, em pequenos acidentes, na ressignificação de objetos do cenário. Lembremos, por exemplo, que um dos personagens lá, depois que foi mordido na perna por um zumbi, é carregado pelos outros num carrinho de mão! Está tendo o apocalipse, os mortos-vivos estão caminhando na Terra, você poderia ir de tanque de guerra, você poderia ir de camburão. Mas não. Você vai de carrinho de mão, claro! Sério Romero? Ou seja, esse elemento ficcional é um elemento que está  ali para ridicularizar, para apontar para esses elementos cômicos o que, em Teoria Literária, a gente chama de "zoação". The Zoeira Never Ends e, portanto, eu acho que é sim possível argumentar por essa linha, de que ele parece um pouco um filme do Charlie Chaplin, mais do que ele parece com um filme como, sei lá, do Freddy Krueger, ou Sexta-feira Treze, que também são filmes que quando a gente olha hoje, são filmes meio do trash horror, trash assim que chegam a ser engraçados, eles são meio retrô, eles são tão toscos que viram bom (risos). Então como vovó já  dizia: "o hábito não faz o monge". Nem todo texto que tem elementos macabros e sobrenaturais é literatura do horror, e nem todo texto que é do horror tem esses elementos. E dito isso, podemos passar ao nosso autor de hoje.

EDGAR ALLAN POE E OS JORNAIS - 05:44 a 10:13

O Edgar, grande Edgar. Dos três autores que eu discuti até agora, o Edgar Allan Poe, com certeza vai ser o mais famoso. Ele tem uma projeção que vai muito além da literatura. Porque ele realmente adentra no mundo do cinema e até dos videogames. Há escritores que são centrais para os especialistas de literatura, mas que o público em geral nunca ouviu falar. E assim como tem escritores que o público conhece muito, que são quase que irrelevantes do ponto de vista da tradição da história literária. O Poe, no entanto, ocupa um espaço muito importante dentro da história da literatura e ele também tem um sucesso de público muito grande. Não tanto em vida, mas certamente após a morte. Então o Poe é um certo tipo de morto-vivo. (Risos)

No episódio passado eu falei sobre a importância dos jornais para literatura do século 19. Os jornais como efetivo meio de comunicação que moldava, de uma certa forma, como o público se relacionava com a literatura e também a forma como essa literatura era produzida e publicada. Os textos, com frequência, ao longo do 19, fossem contos ou romances, eram normalmente publicados nos jornais e depois em um volume em forma de livro. Alguns escritores não seguiam essa linha, mas você publicar diretamente em livro é até algo problemático. Existe um certo ranço cultural contra isso, porque você não passou pelo aval do público ainda. - Então talvez não seja tão bom assim, porque tu nem ia conseguir ter tido um público. Olha o cara, o cara já publicou direto em livro que coisa é essa? - Então é muito interessante, porque é uma visão bastante diferente da nossa. Isso influenciava, inclusive, a forma como os escritores eram pagos. Porque assim como as novelas da Globo, (risos) a opinião do público vai exercer uma influência sobre o texto, porque o texto está sendo produzido, enquanto está sendo consumido.

É uma perspectiva bastante diferente da atual, em que o texto está pronto, no momento em que ele sai no seu formato em livro, pode ser o formato digital e etc, mas ele já está  pronto. Se o texto é produzido enquanto o público está consumindo, esse texto, as vontades do público, vão se manifestar de alguma forma ou de outra. E é por isso que a gente tem casos como, por exemplo, no "Conde de Monte Cristo", que o personagem morre, mas daí depois você descobre que ele renasce do nada assim. Por quê? Porque o público exigiu e tinha que ter, ia vender mais. - Então espicha a história aí Dumas, espicha a história para a gente vender mais jornal. – Portanto existe uma pressão sobre os escritores para que as obras sejam gigantescas. Porque quanto maior a obra, mais jornal vou vender, mais dinheiro eu vou ganhar, etc.  E então, esse é um dos motivos pelos quais as obras do 19 tendem a ser tão compridas.

Vejam os romances do Charles Dickens, são gigantescos, não tem coisa que seja menor do que o tamanho de um tijolo, basicamente. Umas 800 páginas parece que era o mínimo. - Dependendo da edição, se tu fica do lado do livro e bota ele no chão, ele meio que bate no teu joelho às vezes. (risos) - Então, esse é um ótimo exemplo de como o mercado editorial exerce uma certa influência sobre a produção e o consumo da literatura. A gente gosta de pensar que a literatura acontece com dois elementos só, que é o autor e o texto, mas, na verdade, esses dois elementos são muito mais numerosos. Tem que colocar, pelo menos, uma terceira perna nessa equação que é o leitor. Se o livro existe mas ninguém lê, não existe literatura de fato. Então a literatura vai acontecer quando eu tiver essas conexões entre autor, texto e leitor. Mas eu posso ir além disso, porque existem editores, existem sensores, existe a mídia... Então há vários outros elementos, outras forças, que vão trabalhar na retaguarda e ajudam a moldar essa nossa visão do que é literatura e de como ela acontece. E, meu Deus, para que que eu falei tudo isso? Porque o Poe escreveu muito pra jornal (risos). A vida inteira o Poe escreveu para o jornal, ele foi editor de vários jornais, e muitos, ou senão todos os contos dele saíram em jornais. E como mencionei no caso do Maupassant, a gente tem mais de uma versão, porque esses textos acabam sendo naturalmente retrabalhados e repropostos.

A MÁSCARA DA MORTE RUBRA - 10:14 a 16:44

O texto que a gente vai tratar hoje, "A Máscara da Morte Rubra" é um texto de 1842. Então esse é o momento que precede toda a Revolução Bacteriana de que a gente falou anteriormente. O ano de 1840 é certamente a apoteose da Teoria dos Miasmas, os eflúvios estão por todos os lados. Esse conto, ao contrário dos outros dois não trata de uma epidemia real. Ele inventa uma nova epidemia, mas eu já vou mostrar como há elementos no texto que permitem a gente a identificar essa doença imaginária. E essa invenção de doenças e de epidemias é uma coisa, há algo em comum na literatura. Pensem sobre "O Ensaio sobre a Cegueira" ou na ficção científica. Agora uma coisa que é um pouco menos conhecida do Poe, é que ele é com frequência citado como um dos precursores da narrativa policial na verdade, da "detective story". E o conto que às vezes é louvado como início dessa tradição de história de detetive é o "The Murders in the Rue Morgue" que é de 1841. Então um ano antes do "A Máscara da Morte Rubra", e ele vai escrever outros contos em que o detetive dele, o Auguste Dupin. vai reaparecer em outros dois contos. Então, efetivamente‚ há uma contribuição, vai ter os seus continuadores e vai desembocar no Conan Doyle, como Sherlock Holmes. E a gente vai falar bastante do Holmes, porque ele tem tudo a ver com doenças, epidemias, epidemiologia... surpreendente meu querido, mas é verdade mesmo. Essa posição seminal que o nosso querido Edgar ocupa em relação a ficção de terror, ele também ocupa, em uma certa medida, em relação ao romance policial. A influência dele sobre a história literária vai ser muito grande, porque o Baudelaire era obcecado por ele e através do Baudelaire‚ toda a tradição dos simbolistas franceses que vai desembocar até no Mallarmé, no final do século 19. O Mallarmé que já é um grande poeta experimental, vanguardista. Isso também vai aparecer nos romances da decadência e esse conto vai mostrar para gente vários desses indícios pré-decadentistas‚ pré-Huysmans e pré-Oscar Wilde. Simbora para o texto. Ele já começa assim, como os outros dois casos, de supetão. Então a gente já começa a ver um certo hábito dos contos que tratam de epidemia, de começar assim, "bam" na tua cara. A primeira frase: "Por muito tempo a morte rubra devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera e tão terrível". Já começou legal. A gente tem uma nova doença, essa morte rubra, e essa doença nova, e portanto, imprecisa, ela vai ter que ser descrita. Se ele falasse varíola, eu poderia saber o que é. Mas como ele está  
falando de "morte rubra", eu ainda não sei. Eu posso suspeitar, mas eu tenho que esperar ele me dar os elementos. Então eu tenho uma doença que é uma incógnita e ela assola por muito tempo. Qual é esse muito tempo? No presente, é no passado ou no futuro? É uma incógnita. Ela devasta o país. Qual país? É o Brasil? A França? os States? É uma incógnita. Isso é muito típico do "horror". O fato de você ter uma imprecisão, de você não conhecer muito bem o cenário, é um mecanismo para induzir esse medo. É exatamente o que a gente discutiu no episódio passado. Quanto menos você entende um fenômeno, mais assustador ele é, segundo os senhores que estavam conversando no trem, lá no conto do Maupassant. E essa epidemia é uma pestilência, que é a mais mortífera e a mais terrível, a gente pega isso na segunda frase. Imediatamente ele vai passar para a descrição dos sintomas: "O sangue era seu avatar e seu sinal. A vermelhidão e o horror do sangue". E é claro que a cor aqui foi escolhida para fazer o paralelo com sangue.  A gente não precisa nem dizer um negócio desse, porque se fosse: "A morte e azul
escuro", (risos) ou "A morte amarelo-canário", iria ter bem menos graça, ou melhor, aí é que iria ter graça, porque realmente seria engraçado. Os sintomas são: "Surgia com dores agudas, súbitas vertigens, depois vinha profusas sangueira pelos poros e a decomposição". Veja, a pessoa decompõe enquanto viva ainda. "As manchas vermelhas no corpo, em particular no rosto da vítima, apenas meia hora". Meia hora! Ela mata em estigmatizavam-na, isolando-a da compaixão e da solidariedade de seus semelhantes. A irrupção, o progresso e o desenlace da moléstia, eram coisas de meia hora! Você contrai, desenvolve e morre da doença em meia hora - 30 minutos. Efetivamente não há nada que você possa fazer e não ter nada que você possa fazer é certamente uma causa de terror. No próximo parágrafo a gente vai descobrir quem é o nosso personagem principal, que é o príncipe próspero.  Ele resolve se retirar, com mil amigos que estão saudáveis, e ele se recolhe em um mosteiro, monastério, decadente, com os muros enormes e os portões de ferro e tal. Eles contrataram músicos, dançarinos e bufões, então tem bobos da corte. A ideia de um monastério, a ideia de bobo da corte, etc, são elementos que remetem a gente a idade média. E é muito típico essa coisa do romance gótico, ele sempre vai beber das tradições da idade média, castelos arruinados, armaduras que se movem, quadros que giram os olhos quando você passa (risos), ou seja, se você assistiu Scooby-doo quando você era criança, o Scooby-doo está jogando com todos os lugares comuns da literatura gótica.  Só que ele está ressignificando aquilo muitas vezes em chave cômica. Eles ficam em quarentena, durante cinco ou seis meses, quando o príncipe próspero resolve dar um baile de máscaras, que o texto vai chamar de: "um baile de máscaras de inédita magnificência".

SHAKESPEARE E A TEMPESTADE - 16:45 a 19:10

E antes da gente continuar, o texto ainda está muito no iniciozinho, eu preciso fazer vários comentários, porque já tem muita riqueza aqui escondida por trás da superfície do texto. A primeira delas é a riqueza intertextual desse trecho, quando a gente lê isso aqui desavisado - ué, ele não citou autor nenhum, não estou vendo referência nenhuma, cadê? -. Mas, na verdade, se a gente leu o nosso Shakespeare lá com atenção, a gente vai lembrar aqui no "The Tempest" - A tempestade, o personagem principal se chama príncipe próspero. Então o nome do personagem do Poe vem diretamente do 'A tempestade". Um texto que o leitor da época certamente conhece. Lembremos também que a tempestade se passa em uma ilha, então em isolamento. E que lá, o próspero encontra um "Caliban", que é uma brincadeira com a palavra canibal. O Shakespeare só alterou de "canibal" para Caliban. O Caliban, em português, é uma espécie de espírito do mal, assim ele é um coitado, ele toma na cabeça de todo mundo a peça inteira. E em um certo momento ele amaldiçoa o Próspero e ele faz isso dizendo: "I know how to curse. The red plague rid you" - "Eu sei amaldiçoar. A peste vermelha, ou a peste rubra, te leve". Então no primeiro momento em que eu disse que o Poe vai roubar o nome do personagem dele lá do Shakespeare, - talvez você já revirou teus olhos pensando em: "Meu Deus lá vem o papinho do professor de literatura"! Mas agora você há de convir comigo que nesse segundo elemento já é mais difícil de refutar. Eu tenho uma peça do Shakespeare em que se fala de uma "red plague" e aí eu tenho um conto que se chama: "The Masque of the Red Death", e essa "Red Death" claramente faz um paralelo com a "Black Death" que é A Peste, A Peste Negra. Então a peste rubra claramente está fazendo um paralelo. E assim a gente não está falando do escritor de quinta categoria, a gente está falando de Shakespeare. E mesmo dentro dos textos de Shakespeare, ele escreveu uma infinidade de textos, são mais de 40 peças de teatro, "The Tempest" é um dos principais. Então, o Poe certamente sabia o que ele estava fazendo e ele certamente sabia como o público dele iria interpretar essas coisas. Então, de novo, a literatura feita pelo menos por uma tríade autor-texto-leitor.

BOCCACCIO E O DECAMERON - 19:11 a 23:23

Mas a coisa não para por aí, porque existe uma outra intertextualidade cavada aqui e essa intertextualidade é com o texto da peste por excelência, "O Decamerão", do Boccaccio. Um texto que é escrito imediatamente após o surto de Peste Negra em 1348. Enquanto que o "Il Decamerone"‚ como o Boccaccio vai chamar, "O Decamerão", já aparece em 1352, então ele é escrito ali nos três, quatro anos seguintes ao maior surto de peste da história. Pelo menos a mais mortal em nível de percentual. Ela matou entre trinta a cinquenta por cento da população do globo e no "O Decamerão" a gente acompanha a história de 10 nobres, sete senhoras e três senhores, que se retiram de Florença durante a peste, e existe uma descrição significativa dos malefícios da peste na cidade. Eles são nobres, todos, claramente, jovens, lindos, maravilhosos e impecáveis e se retiram para um lugar ameno em que eles ficam contando história, se divertindo, eles recitam poesias, eles dançam... Então o paralelo é muito parecido. Só que no Boccaccio eles são todos refinados e pudicos, enquanto que aqui no Poe, ele vai usar isso para enfatizar a degeneração de uma certa forma, essa coisa da decadência de fato. Enquanto o personagem do Boccaccio vai estar tomando champanhe com o dedinho mindinho esticado, o personagem do Poe vai beber uma jarra de vinho "numa sentada", com vinho escorrendo na barba. (risos). O cenário é muito parecido, mas a modulação disso no texto é bastante diferente e essa relação com o Boccaccio não está só no paralelismo, nobres que vão durante os tempos da peste se isolar numa casa no interior. Vai além disso por causa de um dado que nos é entregue no texto, assim de forma quase completamente secundária, que é o número de pessoas que vão para lá. São mil aristocratas - mil - 1.000 -, enquanto que no caso do Boccaccio eram dez. E é por isso que o livro se chama "deca hemeron", de que seriam dez dias, é uma declinação italiana do grego antigo. Então se chama "dez dias" porque cada dia uma das pessoas conta uma história, então você tem 10 histórias por dia e, portanto, você tem cem histórias no fim do dia. Então o fato de que sejam um mil nobres que se retiram ao mosteiro, é claramente uma referência a isso. Não tem como escrever um negócio desse e falar: "olha só, bateu aqui, ó que coincidência."

Não tem coincidência, o o seu Poe, esse nosso querido Edgar sabe muito bem o que ele faz. Essa era a primeira coisa que eu tinha para dizer - intertextualidade - e esse é um mecanismo literário que vai ser muitíssimo usado nos textos de ficção que tratam de epidemias. Vocês vão ver reiterados exemplos dessa prática. E a segunda coisa para qual eu gostaria de chamar tua atenção é para o vocabulário. Veja que o Próspero ele é intrépido. O baile é de inédita magnificência, depois vai ser voluptuoso e o prédio tem sinuosidades. Então existe aqui uma busca estetizante, uma busca por um vocabulário refinado, áulico, - áulico é uma palavra bonita para dizer "falar bonito". E para que dizer "início da epidemia", se eu posso dizer "o desenlace da moléstia"? (risos) Poxa poe! E esse é certamente o interesse do Poe, faz parte da estética que ele está propondo aqui e faz parte da estética do gênero horror durante um certo tempo ao longo do 19. Essa coisa arcaizante, para dar um ar de texto empoeirado. E esse vai ser um dos legados significativos do Poe. O Poe é, em grande medida, um precursor da decadência também por causa disso. A decadência tem um interesse enorme sobre as extrapolações do vocabulário e isso vai chegar ao século 20. Lembremos que um dos grandes e últimos romances da decadência, já profundamente irônico é o "Morte em Veneza", de ninguém menos do que Thomas Mann. Mas simbora que se não eu não vou terminar esse conto é nunca!

A MÁSCARA DA MORTE RUBRA, ANÁLISE DO CONTO - 23:24 a 31:29

 

Começa o baile de máscaras, mas antes dele começar a descrever o baile, ele pára o texto para ficar um trecho super longo descrevendo o cenário em que isso se dá. Então ele descreve todas as salas do monastério, as decorações, as cores, a cor das vidraças, o bater do relógio, que toda meia-noite bate o tempo inteiro, e todas ás vezes que o relógio bate monótono, pesado, ele causa medo no coração dos convidados. Depois de descrever todas as salas, ele vai discutir as fantasias, "havia muito brilho, muita pompa, muita coisa fantástica, muito daquilo que, desde então, pode se ver em Hernani." Isso é muito interessante porque esse Hernani, ele está fazendo uma referência a uma peça do Victor Hugo, que é de 1830, e que depois foi transformado em ópera pelo Giuseppe Verdi‚ que virou Hernani, em italiano e que é de 1844. Então O Hernani, do Verdi, a ópera, surgiu dois anos depois desse texto. Mas ele demonstra para a gente o quanto essa peça do Victor Hugo teve um sucesso estrondoso e o quanto ela é conhecida. O Poe não precisou se referir textualmente ao Boccaccio ou ao Shakespeare, ele não menciona nenhum título dos dois, ele confia na tua capacidade de reconhecer esses elementos. No caso de "Hernani", ele te dá o título da peça, mas ele não te diz o autor tampouco. Eu acho muito interessante esse texto que está se colocando lá num passado, incógnito e longínquo de uma certa forma, com elementos de idade média, fantasiosa. De repente traz uma perna para o presente contemporâneo de Poe‚(risos) é curioso isso.

E aí, tudo bem, ele continua descrevendo as fantasias delirantes, arabescas e por aí vai, até o momento em que o relógio começa a bater meia-noite. Tem que ser, vejam, meia-noite. Um dos lugares comuns da literatura horror. De novo, todo mundo que assistiu o Scooby-doo, sabe das badaladas da meia-noite, não é à toa que "Sexta-feira 13" passa nos horários tão tardios assim. Nesse momento o relógio vai bater as 12 vezes e é claro que na última badalada, "antes que se esvanecesse o eco", alguns dos convidados "puderam perceber a presença de um novo mascarado, que, até então, não atraíra as atenções. Entre murmúrios, propagou-se a notícia da nova presença; elevou-se da companhia um zum-zum, um rumor de desaprovação e surpresa, a princípio; de terror, de horror e de náusea, depois." Vejam que ele não nos disse quem é esse novo conviva, mas o fato que ele seja novo, depois de cinco meses, indica que ele é um invasor. Ele quebrou a quarentena de alguma forma, porque ninguém sabe quem ele é e no início o sentimento que ele desperta é desaprovação e surpresa.

Mas, imediatamente, ele vira terror, horror e náusea. Lembremo-nos da nossa discussão no episódio passado, em que ao longo do século 19 o medo era a causa, era considerado como uma condição médica e poderia te criar uma susceptibilidade a doença. E o texto continua nessa mesma linha, de ficar enfatizando os sentimentos do público, antes de descrever para a gente o que é que eles estão vendo. Então ele vai falar da agitação causada pela aparição e a aparência, que ele chama carnavalesca, extravagante do novo mascarado, que ultrapassava, inclusive, os indecisos limites de decoro impostos pelo príncipe.

E aí sim, finalmente ele nos diz como é que esse convidado ou invasor, na verdade está vestido. Ele era: "Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não provado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra". Então ele está vestido de peste, da parte vermelha. "Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates." E assim a gente descobre que esse invasor está disfarçado de "Red Death". E por isso uma das brincadeiras do título é "The Masque of the Red Death", ele realmente está mascarado. Enquanto que o título também, claramente, se refere as "Death Masques", porque quando‚ é bem comum no século 19, quando uma pessoa morre é bem comum fazer um emplastro do rosto para ter, a gente chama, de uma máscara funerária, uma máscara de morte. O príncipe se enraivece com a ousadia desse intruso, de se disfarçar, de se mascarar de morte rubra e ordena que ele seja atacado, mas o próprio príncipe tem um momento de covardia. E ele caminha tranquilamente, o invasor, de uma sala para outra, ninguém esboça nenhum gesto para detê-lo, diz o texto. E assim "o mascarado pôde seguir seu caminho com desembaraço, e com os mesmos passos solenes e medidos com que passara da sala azul à vermelha...", ele vai caminhando tranquilo, tranquilo, em direção ao príncipe próspero, que o ataca com seu punhal. Mas antes mesmo de ele chegar, se aproximar de fato do vulto, ele já cai no chão, morto.

Nesse momento alguns dos foliões tomam coragem, e puxam a máscara e a mortalha que cobre o convidado, e não tem nenhuma forma tangível, é um espírito ali dentro e assim se descobre, o texto diz, "Só então se reconheceu a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E, um a um, caíram os foliões nos ensanguentados salões da orgia, e morreram, conservando a mesma desesperada postura da queda. E a vida do relógio de ébano extinguiu-se simultaneamente com a do último dos foliões. E as chamas dos trípodes apagaram-se. E a Escuridão, a Ruína e a Morte Rubra estenderam seu domínio ilimitado sobre tudo". Então é a própria morte, a própria personificação da doença que aparece como um elemento
sobrenatural. E que extermina, em questão de segundos, talvez alguns minutos, todos os mil aristocratas que estavam no baile. Inicialmente, o texto induz a gente a pensar de que talvez esse mascarado não seja uma entidade sobrenatural, que talvez ele seja um invasor, de alguma forma, que talvez tivesse infectado, e que, portanto, trouxesse a doença. Mas o último parágrafo vai revelar as cartas, assim como no texto do João do Rio em que ele guarda a situação final, o desenlace, para também, para o último parágrafo, para a última frase. O Poe faz exatamente a mesma coisa, fechando com uma chave de ouro‚ a gente sabe que quem apareceu foi a personificação da própria doença e que quando ela terminou de dar o seu show, o que aconteceu? Ela estendeu o seu domínio ilimitado sobre tudo. Ela realmente trouxe o extermínio. E uma outra coisa fascinante desse texto é que aqui não há nenhuma referência a germes, bactérias, vírus, claramente, porque eles ainda não existem‚ mas também não há referências a miasmas, ou aos humores hipocráticos. Aqui a referência inteira é sobre o medo e o pavor. O terror é reiteradamente retomado e reafirmado no texto, o que indica para gente que talvez o mecanismo com que a morte vermelha mate, não seja nem tanto os seus sintomas, mas o medo em si, que faz com que esses convidados desenvolva a doença. E terminamos com o gran finale do silêncio.

 

CONCLUSÃO - 31:30 a 32:11

Não foi o conto mais positivo da história. Se você já estava preocupado com o Corona, meu amigo, agora não ajudei muito para solucionar a situação. E‚ por isso então, que da próxima vez eu vou tratar de um texto cômico‚ chega de tristeza. Vamos falar de cólera e de uma batalha de santos, a "Guerra dos Santos" - La Guerra di Santi - um texto do Giovanni Verga, uma pequena joia da literatura italiana. Muito obrigado pela sua atenção e até a próxima. Um abraço.
 

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