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#4 O que os olhos não veem, o Medo é que sente! "O Medo" de Maupassant
Transcrição

INTRODUÇÃO E REVISÃO DOS EPISÓDIOS ANTERIORES – 00:00 a 08:49

Olá, meu querido e minha querida e bem-vindo a mais um Literatura Viral, o podcast em que eu falo sobre literatura e epidemias. Meu nome é Áureo Guérios e eu sou doutorando em literatura comparada. No episódio anterior, você me ouviu falar sobre A Peste, de João do Rio. Usando esse conto, a gente pensou sobre como o medo ao longo do século 19 até o início do século 20 era considerado uma condição que predispunha a uma pessoa desenvolve doenças, através dos miasmas. Hoje a gente continua tratando desse tema, mas mudando um pouco de abordagem, a gente vai continuar falando de medo através de um conto do Maupassant, que se chama "La Peur", o medo. Simbora...


Medo, susto, pavor, terror, angústia, temor, desbrio - essa é massa. Está aí um sentimento que está bem na moda. E é por isso que, aqui no Literatura Viral, durante alguns episódios, a gente vai falar de medo e como a literatura e a história cultural apresentam diversas facetas para gente. De como a gente pode lidar com esse assunto e de como esse sentimento não é necessariamente tão novo. E a gente pode ter alguns insights quando a gente pensa em como as pessoas lidaram com isso no passado, no mundo real, mas também, como as pessoas lidaram com isso no mundo ficcional, na literatura. Como nós discutimos, no episódio anterior o medo e a angústia são um estado emotivo que nasce de um sentimento de perigo, que é real ou que é imaginário e do fato de que  sugeri uma pequena distinção entre a pessoa que sente medo, pensa que está diante de algo que vai lhe ser danoso. E eu duas palavras, a palavra medo e a palavra angústia. Quando a gente sabe qual é a coisa que a gente teme, eu chamei isso de medo. Quando a gente simplesmente teme uma coisa desconhecida, uma coisa a qual a gente não tem acesso, e isso causa, na minha opinião, muito mais terror, porque o desconhecido é não ter como você fazer nada, esse sentimento chamei de angústia. E no episódio anterior, eu discuti como ao longo da história da medicina, especialmente no século 19, o medo era considerado um fator que criava uma susceptibilidade, - nossa saiu uns "p's" a mais aí,  susceptibilidade, quase um beatbox - (risos) um fator que criava uma predisposição ao desenvolvimento de doenças.
E a gente viu isso na prática, usando um conto do João do Rio, um conto de 1910, que se chama A Peste, embora trate da varíola (risos). E nesse conto a gente vê a trajetória de dois amigos, um primeiro que está com muito medo, e o segundo que está numa boa e tenta convencer o primeiro de que ele está exagerando. Mas quando o primeiro amigo fica doente e o segundo vai visitá-lo no hospital, ele progressivamente, cada vez, começa a ficar com mais e mais e mais medo, até que finalmente ele também caiu doente. E o conto faz uma relação, cria uma relação implícita entre causa e consequência, ele não diz para a gente: "ele estava com medo e logo ele ficou doente". 
Mas ele deixa isso escrito nas entrelinhas, e o João do Rio sabe que o público leitor dele, de 1910, vai ter uma intimidade grande o suficiente com essas ideias, para que eles possam ler essa mensagem criptografada. E hoje eu gostaria de começar uma nova etapa nessa discussão, citando a autobiografia do Mark Twain. Mark Twain é um autor dos Estados Unidos e é um cara muito divertido, ele é super irônico e simplesmente muito engraçado. Eu recomendo para todo mundo. Quem tem um certo amor por literatura infantil ou infanto-juvenil, pode ir atrás do Tom Sawyer que é um livrinho muito divertido, e quem gosta de literatura de viagens, pode ir atrás do "The Innocents Abroad" que é um relato da viagem do Mark Twain, ele realmente fez essa viagem em 1867, ele vai da Filadélfia, eu acho, ou de Nova York  e vai até a Terra Santa. Então ele faz uma peregrinação até Jerusalém e durante esse momento ele visita a Espanha, visita a Itália, e isso acontece durante um surto de cólera, então ele é colocado em quarentena várias vezes. E como ele é muito irônico contra todos, contra ele próprio, tem muita coisa que não tem nem como você entender, se o que ele tá dizendo aconteceu mesmo, porque ele tira tanto sarro, e tem várias coisas que fedem a ficção na verdade. (risos) E é um contraponto interessante ao momento que a gente está vivendo agora. Porque o bom humor, certamente, é um dos mecanismos que quebram o medo, especialmente se acompanhado de informação, mas informação verdadeira - fora fake news rapaziada.
Então se você vestir a sua couraça de informação e pegar sua espada de bom humor, certamente você está muito preparado para lutar contra o Corona. Na autobiografia do Mark Twain, que já tem um título super divertido, porque se chama "Mark Twain's Own Autobiography", então é a autobiografia do próprio Mark Twain, já tem uma um pleonasmo, que é uma brincadeira. E ele conta quando ele tinha 14 anos de idade, Mark Twain nasceu em 1835, durante um surto de cólera inclusive. Foram seis epidemias de cólera em pouco mais de 115 anos. A primeira começando em 1817, quando Mark Twain não tinha nem nascido, e a sexta terminando nos anos 20, 1923, 1927, 1929 - alguns dizem. Então, nesse intervalo de mais ou menos 115 anos, o cólera rodou o globo seis vezes. A questão é que na autobiografia do Mark Twain, ele tá contando um "causo", uma anedota da infância dele – eu vou ler do texto agora, mas eu não sei se esse texto está traduzido, estou usando a referência do texto em inglês, mas eu vou traduzir ele diretamente para o português: "Aqueles eram os dias da cólera de 49. As pessoas ao longo do Mississipi estavam paralisadas de pavor. Aqueles que podiam fugir, fugiam. Mas muitos morriam de medo durante a fuga. O pavor matava 3 pessoas para cada uma que o cólera matava."
Olhem que interessante esse comentário, para cada pessoa que, efetivamente, morre da doença, nas palavras de Mark Twain, três morrem de pavor. Não morrem da doença. Morrem de tanto medo, que caiu morto. "Aqueles que não podiam fugir se mantinham ensopados com preventivos contra o cólera, e a minha mãe escolheu o tônico de Harry Davis para mim." Então era algum tipo de remédio (risos) em voga na época. "Ela não se preocupava por ela mesma, e evitava todo tipo de preventivo. Mas ela me fez prometer tomar uma colher de sopa de tônico todo dia. Originalmente eu tinha intenção de manter a minha promessa,  mas no momento em que eu disse isso eu não conhecia tanto sobre o tônico quanto eu passei a conhecer depois da primeira vez que eu experimentei ele." E aí ele vai contar como o irmão dele tomava o remédio sozinho por livre e espontânea vontade, mas o Twain tinha que fazer isso por livre e espontânea pressão. Porque a mãe ficava marcando e vigiando ele pra ver se ele tinha tomado ou não, marcando com lápis no rótulo do frasco do remédio conforme o líquido fosse abaixando. E aí ele diz que o que ele faz, ele mora numa casinha de madeira em que existem pequenas fendas nas tábuas do chão, então ele joga, ao invés de tomar a colher de chá do remédio dele, ele joga o remédio entre as fendas da madeira. E ele conclui a história dizendo que ele fez isso com excelentes resultados, porque nenhum cólera aconteceu abaixo no solo. Então, (risos) como sempre, Mark Twain tirando sarro da situação. Esse comentário de que três pessoas morriam de medo e ansiedade para cada pessoa que morria de doença, revela muito sobre a mentalidade médica do século 19.


O MEDO E O ROMAN DE FEUILLETON - 08:50 a 13:41


No futuro nós teremos outras oportunidades de discutir esse tipo de perspectiva, mas hoje eu vou tratar de uma outra faceta do medo, um outro desenvolvimento, usando um conto do Gui de Maupassant, que se chama "O Medo", "La Peur". A palavra em francês "peur", que é muito parecida com a do italiano, que é "paura", ambas vêm do latim "pavor" e que dá exatamente a nossa palavra "pavor".  Na verdade se você for procurar esse conto, ele não é um, mas dois, porque o Maupassant escreve em um momento muito específico, momento da proliferação dos jornais, - o que você compra, o que teu avô lê  na pracinha, antes de jogar o dominó dele -. Esse jornal é uma tecnologia nova no século 19, é o momento de grande expansão desse mecanismo de comunicação e é por isso que ao longo do século 19, de 1850 até o início da rádio e depois com a TV e com o cinema, que vão dar o golpe de misericórdia nessa centralidade cultural que jornal tinha na vida das pessoas, nesse momento, os escritores e a literatura tinham um impacto na sociedade que ia muito além do impacto que ela tem hoje. Esse era um momento de ouro (risos) em que os autores eram rockstars assim. Veja-se o tamanho do funeral do Victor Hugo em Paris ou o quanto Balzac era recebido na sociedade francesa e comentado e etc.  Isso é verdade, inclusive para o Brasil em certa medida, porque se a gente para para pensar, muitos dos escritores obtinham seu ganha pão escrevendo para jornais. O Machado de Assis escreveu para jornais a vida inteira, o próprio João do Rio escrevia muitíssimo para jornais e se mantinha dessa forma. E esse é o momento fascinante da história da literatura, porque ele envolve o nascimento de um novo meio material de disseminação de informação. O que o Whatsapp (risos) é hoje, o jornal era em 1850. E esse novo meio de comunicação gerou uma nova forma de se escrever a literatura, que é produzir textos "serializados", o que em português, muitas vezes a gente se refere a esses textos "em série", usando o termo francês que é "Roman de feuilleton" e o que isso quer dizer, que cada jornal publicaria o seu fascículo, uma pequena história, uma parte de um capítulo ou um capítulo de uma narração, que continuaria. Se aquele jornal saísse uma vez por semana, você teria que esperar até semana que vem para poder continuar história. UAU! Veja, a Netflix não inventou absolutamente nada. Ela está replicando o modelo de literatura que já existia em 1850, 1870, e que gerou essas grandes obras do Feuilleton, obras famosas, pelo menos não grandiosas, como "Os Três Mosqueteiros"  ou "Conde Monte Cristo", obras que dependem muito, do que a gente chama muitas vezes em literatura, de um "cliff hanger". Então o capítulo termina no momento de maior tensão, justamente para garantir que você vai comprar os próximos episódios, exatamente tal e qual o "House of Cards" ou "Breaking bad" ou "Game of Thrones". E isso tem um impacto muito significativo na forma como a literatura é consumida no século 19. Porque uma grande parte dos textos dessa época foi publicado primeiro em jornais, em fascículos, e depois em livro. Esse é o caso do "Ana Karenina", ele levou quatro anos para ser publicado na íntegra. Então a experiência de leitura, era uma experiência que era fracionada no tempo, mas também era em uma certa medida, coletiva. Porque eu lia o capítulo, daí eu comentava, era exatamente igual a série de hoje. Eu comentava com meus amigos: "Nossa você leu aquilo lá, o que será que vai acontecer? O que que tu achou?" 
Por causa desse mecanismo, a literatura é muito mais vivida e e ela tem um impacto cultural, portanto, que é o equivalente do que a Netflix tem hoje. Se eu vou num casamento e me jogo numa mesa em que eu não conheço ninguém, eu tenho que fazer amigos, a Netflix (risos) vai me permitir ter um assunto em comum, porque com certeza a gente consegue encontrar alguma série ali que  a gente entende e pode falar um pouco do assunto. Porque se não for isso, eu vou ter que falar ou do tempo, ou do zodíaco, vou ter que perguntar o signo das pessoas, porque fora isso...
A literatura funcionava exatamente da mesma forma. E por que que eu falei tudo isso? Porque o Maupassant escreveu muitíssimo para jornais, e por isso várias vezes ele reaproveitava o mesmo texto, a mesma ideia. E às vezes a gente tem três versões do mesmo texto.

A REVOLUÇÃO BACTERIOLÓGICA E O MEDO DE GUY DE MAUPASSANT - 13:42  a 29:25
 

O texto que eu vou discutir hoje, "O Medo", na verdade tem duas versões, que são bastante diferentes, uma publicada em 1882 e uma publicada em 1884. Essas datas parecem besteira, mas elas são importantes, e por quê? Porque já há cerca de 20 anos existe uma linha de pesquisa, que ainda é pequena, mas que trabalha com uma nova teoria do que causa doenças, e essa nova teoria é a Teoria dos Germes, que vai causar, eventualmente, a Revolução Bacteriana - a  gente vai falar sobre isso em maiores detalhes no futuro. Mas muito rapidamente, o que a Teoria dos Germes postula é que existem pequenos animaizinhos invisíveis, eles chamavam de "animálculos", que são muitas vezes imaginados como uma forma de inseto invisível que entram no corpo.  É o antecessor das bactérias e dos vírus, mas ainda essa ideia ainda não pegou, é uma ideia um pouco (risos) apócrifa nesse momento histórico. A partir de 1860, ao longo de 1870, essa ideia começa a tomar fôlego através dos trabalhos de vários pesquisadores que eu citei aqui. O Pasteur, certamente, é um gigante dessa tradição, mas eu mencionei outros, como Hansen, cuja descoberta em 1876 do bacilo da lepra é um salto avante na história da ciência mesmo. E a gente vai chegar, depois, ao trabalho do Koch, com o bacilo do anthrax, no final de 1870. E em 1882, ele vai descobrir o bacilo da tuberculose, e essa é uma descoberta extremamente relevante, extremamente! Um choque cultural! No ano seguinte, o Koch vai descobrir o bacilo da cólera. Então, o início dos anos 80 é o momento em que a Teoria dos Germes está ganhando aceleração e os frutos da Teoria dos Germes começam a adentrar na cultura, na cultura popular e na literatura. E uma das formas que esse influxo toma é justamente o medo do invisível, o medo das bactérias. Às vezes esse medo é tratado de forma cômica, é ridicularizando a germofobia, esse medo exagerado desses animais invisíveis, como um certo tipo de histeria. 

 

A estratégia do conto de hoje é diferente, é um conto sério e ele não é um conto particularmente bom, (risos) – eu me entrego, admito mesmo, admito! -   O critério que eu uso para escolher os textos que eu vou discutir aqui, são critérios de cunho histórico-cultural, não necessariamente de cunho estético. Então, sim, eu acho que o conto do João do Rio, que discuti na vez passada, é um grande conto! Um conto muito bom e antológico nesse sentido. E eu já não penso isso do conto que a gente vai discutir hoje. Mas ainda assim eu acho que ele é relevante, não tanto pela estética, mas por outros fatores. Se você quiser ler esse conto, lembre que ele é "O Medo", de 1884, e ele começa dentro de um trem.  O outro começa dentro de um navio. Eu vou me referir aqui à tradução da Ana Cardoso Pires e o texto já se abre adotando uma estratégia muito parecida com a do João do     Rio. 

A primeira frase é: "O comboio desfilava a todo vapor nas trevas", enquanto que a frase do conto do João do Rio começava de supetão com ele, que tinha um pavor enorme, parado no banco e ele começava a falar das nuvens no céu, fazendo uma indireta, se referindo aos miasmas. Aqui a gente se encontra dentro de um comboio, ou seja, de um trem que desfilava a todo vapor. Vejam que "a todo vapor" claramente está indicando a velocidade do trem, mas é importante que a palavra "vapor" esteja aí. Ele poderia ter dito: "o trem ia em velocidade alta", ou "ele ia com toda a força a frente". Não sei, ele pode fazer o que quiser! Se ele menciona a palavra "vapor" num contexto em que vai se falar de doenças, e em que a gente sabe que o "vapor" é a teoria, ou a neblina, a fumaça, é a teoria que é culturalmente mais aceita pela população, claramente é só uma indicação do que está por vir. Assim como João do Rio resolveu começar com uma descrição das nuvens do céu, repetindo a palavra bruma três vezes em duas linhas; o Maupassant resolve já usar a palavra "vapor", como a quinta ou a sétima palavra da primeira fase. E talvez nesse momento assim, (risos) você já esteja pensando: "Esses professores de literatura adoram ver pelo em ovo, uma mirabolância!" Mas a questão aqui, se a gente vai olhar o original, isso tá lá também. O texto, efetivamente, começa com o "Le train feuillete a toute vapeur", que é exatamente isso, "O trem corria tod vapor!" Nesse contexto, me desculpe meus queridos, tem relação. E se você ainda não está convencido disso, a gente vai encontrar uma confirmação na próxima frase. O trem está correndo e dentro do vagão do trem tem duas pessoas que vão começar a conversar, e o texto diz: "cheirava muito a fenol aquela carruagem do Paris e Leão-Marselha, que vinha manifestadamente de Marselha". Há duas pistas para gente nessa frase que remontam a essa ideia das doenças.
A primeira é que se fala muito em cheiro de fenol, vejam que os miasmas são cheiros ruins, também, eles são fedidos. Mas o fenol é um dos primeiros antissépticos na verdade, ele era usado para combater o cólera, especialmente a partir de 1860, por aí. Só que ele fede muito (risos), então você há de concordar comigo que se a cabine foi esterilizada com um produto químico que é fedido, não faria nenhum sentido se não tivesse em um contexto de epidemia. - Pra deixar um cheirinho gostoso que não é! - Essa é a primeira indicação. A segunda indicação é que o trem viaja de Marselha para Paris. Por que que isso é relevante? Porque Marselha, é na cultura francesa, a cidade doente por excelência. Ela é um porto do mediterrâneo e é em Marselha, por exemplo, Marseille, em francês, que o suposto último surto de peste na Europa se manifestou, em 1720, A Peste de Marselha. Esse dado histórico não é exatamente correto, mas não interessa para gente hoje. Nós vamos discutir em outro momento! Assim como se alguém me diz "Rio" eu penso, às vezes, "samba", da mesma forma uma das possibilidades quando alguém dizia "Marseille", nesse momento, era pensar doença. Enquanto que hoje talvez você pensa "futebol", sei lá. E ele continua dando esses indícios, porque no próximo parágrafo ele vai falar que: "o bafo do comboio veloz atirava-nos uma coisa quente, mole, opressiva, irrespirável", então de novo, essa ênfase no vapor, na opressão do vapor, nessa atmosfera fedendo de desinfetante. E aí, quando eles estão, os dois sem conversar, ainda um de frente para o outro, num comboio, eles olham para fora e veem uma fogueira, e essa fogueira aparece, abre aspas, "como uma aparição fantástica", esse é ainda mais um indício. 
E vejam que a gente ainda não saiu  da primeira página. Porque se a doença é causada por miasmas, e esses miasmas são vapores fétidos no ar, talvez a forma com que eu possa evitar a doença seria se eu construísse uma fogueira gigante e purificasse o ar através do fogo. E isso vai de uma forma me livrar dos miasmas.  E isso era uma coisa que era efetivamente feita, como medida sanitária, de prevenção. Eles estão passando de trem, é só uma fogueira do lado ali, então, essa ideia de purificação do ar através de uma fogueira remete a uma prática, mas não é o que tá acontecendo aqui no conto em si. Eles passam, veem a fogueira e é exatamente meia-noite. Então veja que a fogueira, foi dito que ela aparece como uma aparição fantástica, e sinceramente, - é a coisa mais banal do mundo, eles vão passar de trem e tem uma fogueirinha acendida, no meio de uma selvinha, que tem alguém acampando, basicamente -. Mas por causa disso eles começam a conversar, e um deles diz: "É precisamente meia-noite caro senhor, e e acabamos de presenciar uma coisa inusitada."  Então vejam que se cria já essa aura de conto fantástico, onde há história de fantasmas e você não sabe para que lado isso vai virar. Essas referências, uma aparição fantástica, meia-noite, tudo isso indica algo para a gente. A gente está preparado para reconhecer os sinais, e opa, isso não vai virar um conto de fadas. Isso vai virar propriamente uma história de fantasma. E aí, eles vão começar a conversar e um dos senhores manifesta essa opinião aqui: - ele começa dizendo uma coisa que a minha mãe me diz todo domingo, meio tarde da noite assim - "acabou o fantástico, acabaram-se as crenças estranhas. Todo o inexplicado é explicável, o sobrenatural seca como um lago esgotado por um canal. A ciência, dia após dia, faz recuar os limites do maravilhoso."
Então vejam que na opinião desse personagem, como a ciência está explicando várias coisas e uma das coisas que ela está explicando é que existem germes microscópicos invisíveis que causam doenças, não tem mais espaço para o maravilhoso, para o estranho, para o supersticioso, de uma certa forma.  E esse espaço, portanto, a angústia, o medo do desconhecido, está desaparecendo. É esse o pressuposto de que parte a conversação deles. E aí, um deles reclama, ele diz: "poxa, eu gostava tanto de ouvir as histórias de crianças, histórias sobre muros do cemitério e fugirem os últimos supersticiosos, diante dos estranhos vapores dos pântanos, - vejam os miasmas - e dos caprichosos fogos-fátuos. Como eu gostava de acreditar nessa coisa vaga e aterradora que imaginávamos sentir passar na penumbra." Então, aparentemente, não tem mais espaço para o fantástico, para o horror, segundo esse senhor, que claramente nunca viu um filme de Hollywood não é? - Se colocarem esse senhor na mesma mesa que eu, lá no casamento, eu vou recomendar "Stranger things" pra ele -. Eles vão continuar conversando e o outro senhor vai responder dizendo: "Só temos verdadeiramente medo do que não compreendemos." Só é possível, na visão desse senhor, que ter angústia,  é o medo do desconhecido - algo muito familiar em tempos de Corona. E aí ele conta um caso que aconteceu na casa do Flaubert, grande escritor francês do século 19, que tem uma enorme herança literária e é uma das influências sobre as vanguardas europeias do início do século. Ele conta que ele estava na casa do Flaubert -  então, o Maupassant ele quer confundir a imagem desse personagem que ele não identificou, com a imagem dele mesmo. Porque o Maupassant era o protegido, ele foi aluno do Flaubert e ele emula muito o estilo do Flaubert, ele também adota uma estética parecida -. E aí ele conta que na casa do Flaubert, ele estava lá um dia e quem estava lá também era Turgueniêv, um dos grandes escritores russos, também século 19, então já formou um "dream team" ali. Talvez você conheça Turguêniev  por causa do "Pais e Filhos", que é o romance mais famoso dele. Eu gosto ainda mais da "Memórias de um caçador", nossa é uma jóia, um livrinho.
E aí o Turguêniev vai contar uma anedota de um dia em que ele está tomando um banho de rio, peladão, na Rússia, e de repente ele sente uma coisa encostar nele dentro da água, - um sentimento que todos nós já tivemos, quem foi para praia já sentiu isso (risos) alguma vez na vida -. E aí ele se vira e vê uma espécie de sereia, que ele descreve como monstruosa e aí tem uma descrição bem antipática do "mostrengo" e o Turguêniev se sente trespassado pelo medo horrendo, o medo glacial das coisas sobrenaturais. E ele sai nadando, e esse suposto monstro continua encostando nas costas dele e depois que o Turguêniev consegue sair do rio ele é salvo por uma criança, que tava cuidando de algumas cabras e que tava com um chicote, e ela dá uma chicotada no monstro. E nesse momento a gente percebe que não é um monstro coisa nenhuma, é uma mulher que vive no mato e que por isso acabou parecendo mais selvagem, etc. No momento em que você entende que a natureza da coisa que tava causando o terror não é uma natureza sobrenatural,e você entende a causa e a causa é uma mulher, que parece ser uma sereia, mas na verdade não é, imediatamente o medo  desaparece, vira ridículo, vira umhistória engraçada, especialmente porque o Turguêniev foi salvo por uma criança.

O outro senhor também vai contar uma história em que parece que há um fantasma, em que também a resolução vem através provavelmente de uma criança. O que me interessa é que quando eles terminam de falar eles ficam uns segundos em silêncio, e aí entra a epidemia. Calou-se por um segundo e voltou a falar: "Veja, caro senhor, estamos a assistir a um espetáculo curioso e terrível, o presente surto de cólera." E aí o texto vai passar a se referir ao cólera, como Ele, usando letra maiúscula, veja que interessante, como se ele fosse uma certa entidade espiritual mesmo. Aí sim, "sente-se perfeitamente que Ele anda por lá", e não é o medo de uma doença que enlouquece as pessoas, a cólera é outra coisa, "é o Invisível", com letra maiúscula também. "É uma praga de outrora, dos tempos passados, uma espécie de Espírito - com letra maiúscula. Malfazejo que regressa e nos espanta tanto, como nos aterroriza, por que pertence ao que se julga, há tempos que já lá vão."
Então, de uma certa medida (risos) a epidemia seria esse medo primal, esse medo primitivo, quase selvagem. E aí eles vão se referir rapidamente à epidemia que está naquele momento na cidade de Toulon, em que as pessoas estão desesperadas. E aí, o porquê que elas estão desesperadas? Porque Ele está ali, porque se quer desafiar não o micróbio, mas a cólera. E a gente quer se mostrar valente diante dela. "Como se fosse um inimigo escondido que nos espreita, por Ele, o espírito que mata, que se sente presente em toda parte, invisível, ameaçador, como um daqueles antigos gênios do mal, que os sacerdotes bárbaros conjuravam..." - três pontinhos  e acabou o conto. Aqui a gente percebe uma contradição, o conto se abre com eles afirmando que - quando a ciência explica o fenômeno, esse fenômeno deixa de ser assustador. Ele passa a ser quase que banal -. No entanto, a ciência - veja no ano anterior descobriu qual era a bactéria do cólera, então eles estão na ponta da lança, eles estão discutindo aqui a ciência mais contemporânea à idade deles, um aninho depois, e no entanto, qual que é a conclusão do conto? Na verdade a descoberta do micróbio, não afastou o medo da doença, mais aumentou Ele ainda mais, porque agora é "um inimigo Invisível à espreita" e Ele é associado a essa ideia fantasmática, de um espírito que está presente em toda parte, um espírito que é invocado. Então Ele é combinado com uma certa ideia de sobrenatural. Então aqui a gente tem um segundo exemplo de uma forma como a literatura vai tratar as epidemias, e em ambos os casos, tanto no João do Rio, quanto no Maupassant, eles tentam dar um ar de história de terror a tudo isso. E olha, se isso não serve para mais nada, pelo menos a gente se sente um pouco menos sozinho. Se você tá com medo do Corona, pense que você está muito bem acompanhado.

PRÓXIMO EPISÓDIO: A MÁSCARA DA MORTE RUBRA - 29:26 A 30:03
 

E já não é de hoje, você precisa realmente estar com medo? Pois olha, eu acho que não. Mas o Edgar Allan Poe discorda de mim, e é por isso que no próximo episódio, a gente vai discutir um texto interessantíssimo. Esse eu adoro! "The Masque of the Red Death" - "A Máscara da Morte Escarlate", traduzida por ninguém menos que o Machado de Assis, senhoras e senhores. E assim a gente continua falando da literatura do horror! Ai que meda! Um abraço!
 

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